22 junho, 2009

Amanda

Era muito sem graça. Os cabelos lisos, a pele clara e aquela timidez de coelho, de bicho assustado. Se vestia muito mal e tinha sempre algo sensato a dizer. Se prestasse bem atenção veria que era bonita, o olhar limpo, a vontade de fazer o certo e de mostrar o que havia lido. E a determinação que se desconhece e ainda assim segue. Era a possibilidade da graça.

O menino perguntou: Como é a sua escola? E tateando no sentido das coisas, a resposta veio afoita: Minha escola é para adultos. E ainda tateando no sentido das coisas percebo a sabedoria das respostas feitas de perguntas. Se a resposta fosse: Como é a sua escola?, certamente muito mais seria sabido sobre o mundo. E a resposta que não pode mais ser dada tira dos bolsos grama para pisar e deitar, céu de ponta de lápis com dedos, árvores, corujas e livros.

Alguns retalhos de ditos, caídos de folhinhas e agendas, coloriam aquele trabalho de fuxico, a manta com que se protegeriam. O clima mudava, antecipando o frio e as horas corriam aceleradas, frenéticas, comprometidas e sérias. Mas o tempo permanecia o mesmo. E era assim o recortar dos mundos, redondos e coloridos, desenho e cor, harmônicos, parte de um traço. As mãos eram responsáveis novamente pela razão de ser. Modelar a forma em seu prestes, entre o que é e todo o resto sido. Rescido.

13 junho, 2009

E por não conhecer palavra de escrever, desenhava. Em vidro, a mulher de cabelos espessos que em suas ondas trazem mar e dia, noite, a cor e a forma do que se parte e que se junta. Passarinho segue sol e dele adivinha raio, o que parte a própria luz e deixa, à mostra, a cor do de dentro. A intensidade e a palidez de um arco-íris guardado.

Nome deve ser dado e conhecido por quem? As coisas nascem por olhos de amor. E o nome das coisas nasce junto com elas. Bom seria contentar com RG e certidão qualquer que diga o que é. Mas viver é um risco e grama nasço e renasço, nomeio e renomeio. Como se respirasse. E surjo:

E o homem havia deixado o relógio, esquecido na falta de tempo. Aviso guardado em gaveta da hora que passa sem pressa e sem sossego e só avança, mesmo dando voltas.

Elpídia e a caixa

A maior implicância era dizer que foi achada no lixo. E de tanto ouvir, acreditou. Com mágoa, dessas que viram orgulho. De uma caixa de papelão. Caixa do mesmo sabão em pó que faria sangrar os dedos, lavando as roupas e o chão, as paredes e que volta a ser o de fazer bolhas. E nada mais útil do que bolhas. A caixa foi trazida pelo pai a pedido do irmão da falecida. Morreu de câncer. No pulmão. Sentia tristeza pela agonia do que não respira e sente dor e lhe mandava bilhetes, desenhos. Lembrava pouco dela, a doçura tímida, uma atenção delicada de ver e ouvir, o que fez com que dissesse, em solenidade, segredo de vida e de morte: gosto mesmo é de ler. E estava ali, a caixa. E que outra mais poderia ser agora? Sabido o perigo das caixas abertas e do que delas escapa e não se alcança, possuía nas mãos a origem de todas as coisas, na caixa onde foi encontrada, entre caçadas e viagens, um catecismo do início do mundo e do pecado, casas com muitos quartos, um caine em motim, meninas, bonecas, os óculos de aro de metal, e os dedos de fazer brotar o amor por uma flor e por ratos cegos. Tudo o que havia dentro de uma caixa sem fundo. Da caixa de que veio.

Era uma planta. Havia descoberto sentindo a flexibilidade do corpo, tão compatível com o desejo de movimento e o encantamento que o vento e sua música lhe davam. Os muitos braços, erguidos e suspirando abraços, se agitavam ao passar dos pássaros, ao que de si se desprendia, soltava e desfazia e, no permanente e no que não muda, renovados a cada dia, as folhas, fiapos de unhas e madeira e o que é roído pelo tempo e pelo esquecimento. Puxava assunto, por suas sombras, com quem passasse por perto e os homens também diziam, qual os outros mamíferos e as aves e os insetos. Os sonhos eram sempre voar ou cair, das mais distantes alturas, e se saber leve e flutuar. Era algo respirando naquela superfície vasta e mínima em que se reorganizam infindaveis pequenos com suas grandezas. Era assim que sonhava. Às vezes corria e acordava sorrindo, florindo. E o chão que leva ao longe faz o pé pedir proteção e por isso, algumas vezes, desejou vaso. As extremidades tateavam o vazio, o lugar em que foi acabar sendo, além de semente, promessa que se guardava com gosto do que ainda não é sabido. O que sabia, feito semente, era o fim. Tinta e papel.

10 junho, 2009

Vermelho guardando azul claro

No impróprio da hora e do lugar, as margens de todos os amantes, disse ao casal: não olhem pra luz! E houve o balde e a bola felpuda. E uma lágrima, que já estava ali, harmonizando com a tampa da esferográfica azul que descansava sobre a orelha. As mãos entretidas na feitura de alguma arte, rasgando papel, segurando balde. Não o reconheceu a princípio, disfarçado de veterinário bem sucedido. O reconheceu pelos braços, Saiote naquele abraço.

Noiva

O que se é nunca se faz esperado pela necessidade de medida dos que aqui vivem. Mas, deixando de ser, será cobrado o sido agora deixado ser. Somente quando era. E ainda nesse século, que como os outros tememos ser o último, ainda se trabalha por um prato de comida, seja qual for a fome que sacie. Perguntaram por você, uma moça tão bonita e sem namorado? E há muito sei que os compromissos não podem ser vistos ou usados em dedo e que não se quotiza ou estabelecem laços e sentimentos por contrato. Em quantas vias? A cor mais adequada para revestir meu corpo e dá-lo ao seu é o vermelho. Depois vem o azul e, só findo um círculo-íris de sensações e desejos chegaria o descanso do branco. Bem depois.

E se é assim, que seja. Até que se encerre o ciclo. E me lembro do que em suas máscaras não gosto, algumas brilham demais, outras sorriem demais e tantas são bobas demais. Fica sempre ao lado o bom amigo clichê. O único que cumpre a promessa e nos acompanha, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza. Eu, tão habituada ao silêncio que falo, e quando me apiedo dos seus ouvidos, grito. E muito tenho gritado com meus silêncios e embora tanto queira, nada peço, tanto que já tenho me disputando os olhos e a vontade. E os ouvidos. E a pele. Gostos e cheiros. Porque aprendi a agonia de meu pai ao ser ignorado. O pior que tem é chamar pessoa e ela não responder. Tá me ouvindo? Ouvi. E não pediria que fizesse as minhas vontades conforme as suas e muito menos que ficasse ou me fizesse feliz, o que sei ser com hormônios e pensamentos. Falta o discernimento de que acontecimentos felizes são os que acontecem. Infelizes todos podem ser, mesmo os pobres e os sem vaidade e feliz não é o que vem de você, mas o que me atinge quando estou ao seu lado. Esse lugar. Nenhum outro pode ser alcançado além do que se ponha o pé. E o corpo, prestes ao florir.

08 junho, 2009

Por mais que espere suas palavras, elas me alcançam desprevenida e me amordaçam. Se cala tudo o que movia e as cores e os cheiros se perdem em meio aos outros e nos idos das coisas. Porque tudo se move, mesmo estando parado e o chão leva os pensamentos nesta velocidade absurda de 365 dias por instante e me canso, dos compromissos, dos comprimidos e do amor. Para quem descreveria estas paisagens feitas por substâncias onírico-orgânicas? As novidades se jogam para dentro dos olhos e talvez descreva, em minúcias, as formas encontradas pelos pés e as frestas que vêem por debaixo das portas. Ou as conversas feitas de coisas não ditas transportadas pelos fios que conversam com os cabelos e que me fazem pensar que só na tranqüilidade da morte é possível escrever. Se apodera de mim, por desejar tanto, um desejo de nada e todo pouco se torna demais, tomando lugar à preguiça de que fui feita, cedendo espaço à realidade que ameaça arrombar a porta que a separa dos sonhos da última noite. A mordaça das suas palavras guarda o medo de que se reveste sua falta de motivos. Medo da morte simplesmente, de que não venha. E a internet, como máquina de fatiar saudades e faltas e de fabricar esquecimentos me encanta. Veículo de transportar suspiros com o tédio que antecede a chegada e, se fujo, é para que não os destrua, deixando apenas o cão. Caminho até a praça e procuro ser com a natureza construída e devidamente podada e controlada enquanto espero que alguma música cante o meu desejo. 18 unhas intactas e agora nada resta. Pensamentos escalam os cabelos, soltos, fios de uma vida que cai pelo caminho. As declarações de amor são feitas de suicídios e do florir de um perfume de efemeridade, do instante em que se cumpre a vida. E nunca fui mais viva do que quando morria em você. Vagando pela cidade os vejo, descontraídos e imóveis, como ela, segurando um livro nas mãos e sem olhar os passantes nos olhos, como eu, atraída por essa sua poesia. Com os fios soltos, os sustos da palavra, acalmados nesses novelos com que se tecem almas.

07 junho, 2009

Para Felipe

Não sei bem se entre os lábios ou no limite da retina, mas é o brilho. É ali que ele está. O sinal de que temos os mesmos avós, a ancestralidade das coisas que a tudo que é vivo irmana. Se mostra em um sorriso com poder de tornar verdadeira a verdade mais secreta de cada um. Olhar de buscar o que ver e, pelas mãos, ser. É certa a possibilidade do encontro e da alegria de ter companhia. Não poderia omitir que aventuras sempre acontecem em boa companhia. Das piores possíveis. As que se fazem de reais, toques, trocas, doações, empurrões, serões, sertões, decepções, exceções, contradições, superações. E de sonhos. O fantástico mundo em que vivem os da mesma espécie.

05 junho, 2009

E vendo as imperfeições em minha boca, as ausências, vejo que grande responsabilidade é para o homem manter os próprios dentes. Porque tudo começou de um sonho e o sonhado foi tão forte de lindo e de descoberta que me fez sonhar com o sonho. E de minha mãe e de minha avó ouvi que sonhar com dente é morte de parente. E todas elas haviam partilhado da sensação. Todas elas traziam, nos secretos de si, os vestígios comuns a todos os que seguiram vozes, como Lázaro, cedendo ao chamado que interrompa o espetáculo de apreciar o perecível de se ter sido. As amígdalas continuavam inflamando com freqüência. O antes, a pequena dor. Comia, voluntaria e voraz e mente, as romãs. E muito tempo é um instante desapercebido no decorrer das coisas e, mais um, e mesmo tendo ficado, se vai. E tudo o que existe é porque foi pousado o olhar, esse leviano que se interessa por chão e pelos fabricantes de florestas. O chão que se solta de si mesmo e se reorganiza e se reagrupa com as novas geografias dadas por mapas de caleidoscópios e que segue em tudo o que se move até que pouse, em definitivo. E foi assim que o vi. No tumulto de um mundo que não respeita os solitários. O reconheci pelos olhos que havia lhe dado, os de enxergar essências ocultas em nomes equivocados. Talvez pudesse usar o nome de um deus adequadamente. Um deus que feito na abundancia se fortalece nas carências. Poucos amores se fazem de alegrias, mas todos conhecem a tristeza. A constatação inevitável de que todo homem é um e que, embora suscetível aos vírus e às idéias que percorrem todos os corpos, não se une aos outros e deles só restarão as marcas que deixadas do impossível contato, reconhecidas pelos que lêem o decorrer do mundo nas chuvas e suas luas. Porque no começo, deus era mulher e criava em silêncio. Dispensado o autoritarismo das palavras, tecia, com os fios do invisível, a luz que seria. E não foi do ventre da terra ou da água, ou do húmus de suas mucosas, que se valeu para fazer o que não poderia ser imagem e semelhança de nada além do próprio do sonho por que não existiria o homem antes do seu sonhar. E de si mesma, o fez, alimentado-o com insaciedades, madrugadas e o desejo do por vir. O homem que virá com seus dentes ainda por arrancar. E nada há alem da água que mina, abundante rio do qual sou margem e afluentes, que se salga no suor laborioso do nada. E nas profundezas dos mares do Deus Ela o homem, que será mulher, é feito. Memória do primeiro aglomerado de células. Porque de toda falta nasce uma vontade.

04 junho, 2009

Esta história é mesmo sem pé e nem cabeça. E assim ela começa, como os humanos, pela boca. Pensava mesmo que gente começava era pelo umbigo já que, vira-mexe-remexe-desvira, olha lá a gente pelejando na tentativa de voltar para dentro da gente mesmo. E pelo umbigo. E pela boca ou pelo umbigo se come. Mas com os dedos, olhos, pele, ouvidos, sexos e com o nariz.

03 junho, 2009

A carta

A carta que você não me escreveu se parece com aquela que recebi quando ainda não o amava. A que falava dos desertos que reconhecia ainda florestas. Mas vieram outras, o tesouro do inesperado. O menino que achava horrível o namorado imaginário e marcava encontros com bicicletas e que considerou o empate viável já que cruzeiro era ela, e aquelas estrelas, e o galo era a força de que precisava para continuar a desejar e que o fez dizer, diante da despedida: se seu time ganhar eu não vou ficar triste não. Brotavam as minas e sentimentos que fluem de mim e que chegam ao mundo pela porta dos olhos com a certeza de valer um dizer que não lembro mas que também não vou esquecer.

01 junho, 2009

A guloseima

Não era, de fato, nada demais. Nada além de um velho hábito, o resquício e o apego ao maravilhamento dos primeiros aprendizados, principalmente para os saciados. Feita de poucos recursos, possíveis de se encontrar em qualquer vendinha do interior. Uma coisinha tão boba e sem graça que era quase o mesmo que novela, esse mesmo igual de sempre e que se segue na esperança de ser surpreendido e que rende que é uma beleza. Dessas coisas de comer como se come pão seco em busca de sustento em hora de necessidade. E com tudo o que a ocupava e pedia seus cuidados, volta e meia estava lá, na cozinha, preparando as mentiras que comeria antes de sair para o enfrentamento do mundo. E por isso haviam tantas, amanhecidas, espalhadas pela casa, enchendo potes que se amontoavam pelo caminho. E se era perguntada do porquê de não deixar de prepará-las, dia que fosse, respondia que isso era o que sabia fazer de cor, sem olhar receita e seguir instrução. E sempre podia chegar alguém.

Cores para noites sem lua