27 maio, 2009

Nesse mundo, que agora habito, havia uma fresta, um feixe de luz por que agora vejo. E por essa fresta pude ver meus olhos e saber quem sou. E vi. A convicção de um autor à mercê do ponto final. E, entre as escolhas que faço, a minha frágil, a minha volátil vontade. A fresta. Esse ínfimo espaço pelo qual me vejo, porque, o outro, o outro, é tão pouco de mim. E sou. E eu e o outro é, entre tudo o que vive e respira, o que mais respeito. Porque sei de meu esforço, ao saber, aos 4 anos de idade, o que era o desejo da, devidamente adiada, morte. Para que não tivesse que viver. E por longas décadas seria só o cadáver convidado á vida. O perecível de se ser. O viés por que foi guardado o seio materno e a leveza do flutuar no fazer de si mesmo. O se saber em gestação.

25 maio, 2009

Era um desses tempos que começam sempre no agora. Um lugar, parecido com esse, possível a olhos que passeiem por janelas. Sem muitos detalhes. Havia plantado ali o começo - borbulhante como um princípio, pulsante como uma vontade e inconstante como existir, sem julgamento de feio ou bonito porque esse era o que respirava e o feio o que deixou de ser, - do próprio encantamento. Mais bonito do que todos aqueles já vistos em folhinhas ou em quadros. Uma casa com um quintal que se dividia em duas. Uma coberta por cimento, a comprovação da civilidade, e a outra, terra bruta e nua, a pele fervilhante de vida que suspirava sua saudade de ser selva. E era ali o lugar de melhor morar, só uma saudade, e que faz o coração crer em paraísos, buscá-los e recriá-los. O mundo era visto de cima dos galhos, o maior conforto que flutuação em barriga de mãe, onde foi procurado outras vezes o abrigo. Mas alguns, ao contrário dos que partem, são os despejados. Alguns apreciam tanto o decorrer das coisas que delas não se saciam e precisam e pedem de volta o direito de pré-existir em maturação de ser casulo ou ovo que não se viola. É sempre o de dentro que sai em busca de mundo maior e não o mundo que invade casa, trazendo necessidade de tramela e cadeado e fé de que o que chega, explodindo o mundo que se dissolve em meio ao susto de outro, seja possível de se contentar com o próprio existir e permita, que por ele se caminhe, em busca dos pedaços de um mundo que se quer de volta. O lugar não perdoado por não mais caber o que foi. E o que resta é só o onde não se aconchegar ao espaço e ter sustento na segurança da queda que chama, como chamou os outros, e que, de tão constante, se faz chão. O chão que é amado porque dele se ergue e molda em mão de deus ou de valente que o valha. Uma metade era um flerte, o aprendizado de que todo amor, por maior que seja, não é tudo. Uma garagem com suas samambaias, uma varanda que se transformava em piscina e o entendimento de que, embora o corpo, essa necessidade de conforto e de tudo que com isso se pareça, higiene, fome saciada, intestinos regulados, rins e pulmões conscientes dos riscos do ar e do que leva e do que traz e um cérebro e um coração carentes de sossego de seresta e levados pelo descompasso da necessidade de inventar tudo o que já foi inventado e o ainda não, se misturar, e não achar ritmo de dança junto a nada além da vontade. Metade guardava oceanos e ilhas e o saber de que a terra tudo guarda, mas que a casa de tudo é o mar. Um jardim, o pé de manacá e as roseiras que mostraram a tristeza de ser cadáver tão jovem, com tanto de vida a perecer frente à leveza do se desmanchar com suavidade no decorrer de se ser. Um portão que foi muitos e que, conforme sua matéria, era o que encerrava. Ripas que deixavam ao alcance dos olhos a poeira da rua onde passavam as pessoas aguardadas e seguidas para os outros mundos que adivinhava. A poeira dos passos era guardada no próprio respirar e, bem sabida a dor de ânsia de adivinhação, vislumbrava que o mundo não é o bastante e antecipava o medo da asfixia. Respirava caminhar e vontade de partir. Quando chegou o metal e sua ferrugem, não ousou ferir as mãos e os pés, que se lançavam contra eles e, embora mais alto e impermeável, sem frestas ou furos, era insuficiente para conter. A prova de que nada há, alto ou forte o suficiente para ser proteção a menos que guarde o buscado. Testemunha muda e corroída da valentia e da covardia, da humilhação por não agüentar esperar até que fosse aberto. Urinava ali mesmo, na calçada, todo o medo com que sobrecarregava os rins. O mesmo medo que impediam a paz aos banheiros, o pior lugar para buscar a dignidade. O medo que fez com que desejasse o amor de deus, o capaz de resolver todo e qualquer tipo de problema, mas que nunca havia dado solução a nenhum dos seus. Se acostumou à realidade de que tudo é falível. A quem é dado o poder de aliviar as dores falta vontade. Porque só a quem a dor verdadeiramente doeu conhece e é capaz de enxergar a dor do outro. E também nisso se salvava por existirem as formigas e sua leve, mas suficiente, dificuldade de ver. Não perdoava os formigueiros e tolerava, por conhecer a própria força e covardia, deles as cicatrizes nos pés. Foi pelas formigas que deixou de ser, definitivamente, humana. Apesar de tudo o que havia acumulado e que entrava por todos os orifícios que encontrasse ou criasse, pingava, gota a gota, um esvair de si mesma. Escorria um pouco de si e deixava, em seu lugar, a descoberta de um novo medo, escondido nos outros, o de se acabar. E via o risco de, a exemplo de família, ser algo não dito pelas novelas e pelos programas infantis. A TV que servia para dar o pensar e o sentir de outras gentes pobremente inventadas e que nunca serão os seus. Se viu como de uma nova espécie, cruzamento de desamores com sonhos, desejo e necessidade de ser pessoa e uma crença na necessidade de cumprir destinos. Mas aconteceu no mundo a desgraça da escrita e da curiosidade, como um gosto de sede, que deixava na boca a saliva, saltando pra dentro dos olhos com o atrevimento de ser letra. Leu o alimento, que também era um ferir, e conheceu, desde o antes de tanto procurar, organizar e entender, o que era viver, mistura de saliva com o próprio sangue, os próprios galhos e sua futura brancura de superfície de mundo a ser inaugurado. Ou o mapa que haveria sempre de se tornar e que trazia as pequenas pegadas. O decorrer de outros vistos que se dissolviam com seu gosto de tinta. Feitiço mais forte do que o que acompanhava chouriço ao serviço e que nada no mundo das verdades feitas por magia desfaria. E por ter comido palavras, palavras vomitaria. E um estômago revolto lhe foi dado, além de um fígado e da dor herdada pelos condenados ao corroer diário, punidos pela águia, sucessora dos lobos e abutres, no ofício de derramar a bílis e o sangue dos que são a prova de sua insuficiência para apresentar o começo do se forjar, o calor mais intenso e frágil, sempre no prestes a se apagar. Aquela dor implicante, que trazia a compreensão a quem disse que assim era o amor, porque, tanto sentir, só poderia pedir pelo que fosse o além de tudo o mais. Sabida no testar em si. A vizinha tinha um irmão gêmeo e havia queimado praticamente todo o corpo por causa de álcool. E, por saber do que podiam as mãos e as cicatrizes, do sabão fervente no sol das três da tarde e do copiar do que não seria lido por faltar detalhes suficientes sobre o fazer das coisas, as deixava descansar da escrita. Os detalhes seriam dados pelas retinas que leu.

A chuva pariu. Com a delicadeza de dedos encontrando cabelos, choveu vento, noite e aurora nessa terra seca do sentir.

24 maio, 2009

Desde o primeiro olhar se amaram, tanto, ao ponto de esgotar. Era até chato de tão bom. E era o que se dizia sempre, justificando a própria quietude de quem não ousa plantar semente sem antes sentir o gosto, esse futuro desconhecido. E as sementes perdidas são as que se salvam. Preservadas em desejo, um sol surgido da terra, guardando broto e ramo. Voar em busca de chão.

17 maio, 2009

Vestidos II

E onde mais encontraria vastidão tão grande de caber Deus do que na pequenez de um sentir sem entendimento e palavra de ser dito e que morava no peito e saía de passeio vagueando pela cabeça? E era a criança despida de força, só conservando a coragem de ter medo e a fragilidade do prestes a se perder. Era a última filha. A que não tinha reservado o lado direito e nem o esquerdo e que não o chamava de pai. Mas havia ganhado um vestido azul. E se sentava no colo de Deus para recusar o seu consolo.

Vestidos

E havia um azul. Diáfano como existir. E de um desejo de paz... E que fez rir a madrinha e as mulheres ao redor quando disse, conforme instruída pela mãe, que era o vestido de ver Deus. E verdadeiramente era. E o usava. E encontrava colo de deitar e ser pequena e criança e chorar para ter acalanto de ninar sonho bom e com anjo. E de Deus poderia ter tudo e não desejava nada além da própria dor e de ser uma tentativa, o encargo de inaugurar o pecado. Queria de Deus não se consolar nunca e papel e caneta.

02 maio, 2009

Viu a fala do homem com nome de bairro. E suas palavras eram de grande sabedoria. Mas porque teve um tio que gostava de contar histórias viu que a fala do homem dizia verdades para contar mentiras. Dizia dos problemas que causam a paralisia que nos acomete diante da chance de vingança contra todas as misérias de estar vivo. E Daniela ia aos rituais em que imaginava o que era estar entre os leões e não ter certeza de a quem pertencia o poder de governar e com os outros, assistindo o prestes a ser o não ser no dilacerado no outro. E pensa: e se fosse eu? Porque tinha entendimento do preço das coisas e embora não aceitasse gorjetas, aceitava as mãos e, junto com as mãos, o vazio que carregavam. Porque o preço das coisas é o preço das pessoas e a maioria dos objetos que a cercavam eram das lojas de 1,99. E as jóias. Garimpos nas séries de milhares e dizia a eles: prefiro ladrões à hipócritas. Os que dizem: sim, fui a regra, os que mostram a cara e te tomam o que precisam com a sua verdade. Não como a mulher na padaria que roubou o seu devaneio de que os de boa vontade têm paz nesta terra. A bolsinha verde claro, com o gato amarelo e um novelo e um coração rosa. O novelo bordado com o gato e o coração no fecho. Achava que não havia identidade. A decepção parece com cárie, dói menos no começo. Os objetos tão perfeitinhos se quebram e a gente que se vire pra limpar os cacos. Feitos para não durar. Conhecia seu povo porque sabia de si. Era da gente mesmo essa resignação desconfiada diante da miséria do outro em ser feliz com a miséria nossa. Porque a nós não falta nada, mas ao homem da fala e ao homem que rouba escondido falta o caráter, a essência do que é o homem, essa beleza que inventou o amor, o verbo e o próprio homem. Ah não, não podia ver ninguém chorar, a Daniela. Será que teriam tempo para chorar? No começo dá enjôo mesmo, mas você acaba por se acostumar e a equilibrar em cima disso, acredite, tem uma coisa chamada gravidade e que leva à queda. Atrapalha mas ajuda. Ainda existe a lua.

01 maio, 2009

Luzandira

Procurava entre os seus apetrechos, uma infinidade de coisas miúdas e sem importância e que, em alguns instantes, se tornavam vitais. Buscava a agulha de desfazer pontos. Decerto faria frio mais a noite. Iria encontrá-los, os amigos do último homem com quem andara flertando. Já haviam sido, formalmente apresentados, mas ainda não o havia levado para a cama. Era o se. Gostava de cinema e do mês de maio. Maio era março suavizado e deslizante. Mais tarde, na terceira série, lhe seria dado o sabor das tardes. E agora era o tempo de aprender. Aí começou. Porque, um pouco antes, desde a morte do cão, soube o que era ela. Algo vivo, frágil, a mercê da brutalidade que é o amor do outro. Havia necessitado até a última gota daquele copo de uísque. Não resisto e levanto uma das faixas da persiana pra ver o barulho que passa. Era ele, o vendedor de biju. Além dos carros. Sentava à frente, por ser menor que os outros, e recebeu o valor dos cantos e das paredes. Sua bondade, bem organizada e de fala baixinha que, mesmo irritada, nunca gritava. Sempre que a via sentia vontade de chorar. Tinha raiva dela. Várias aprontou. Como aquela redação pregada na parede, com as borboletas e as flores de papel e aquela letra. ( ) a letra com que sempre desejei escrever meu nome. O jardim que havia plantado para dizer primavera. Ali, pregado na parede, para todo mundo ver. Lindo! E também não pensou duas vezes antes de delatar a freqüência com que não ia, e o atrevimento e a impertinência. Mas era uma boa menina, mesmo assim, e inteligente e esperta. Sempre tinha um palpite errado pra ser dado. Apanhou e foi comparada ao que não devia ser, o irresponsável que suspeitavam estar cheirando cola. Qual seja a razão, matariam sempre as aulas. Fosse para estar só ou por não ter coragem de dizer a ela que já era tarde demais. Não se lembrava do mundo sem as drogas, sempre estiveram lá, desde que precisou respirar. Outra boa foi o sapo. Justo o sapo, o boca grande? Queria ser a borboleta, o bonito. E a recuperação? Aula durante as férias, só com os bobos na sala, os outros, que aprendiam com ela, lá fora, brincando no pátio da igreja. E é preciso dar graças por cada instante que não passou naquele pátio e sim naquelas conversas de adulto com criança, dando coisas pra dizer às cartas que receberia. Tinha fama de durona e brava e era feia pra essa beleza de atriz de novela. Disse a outra, que chegou à porta: vai escrever o discurso da posse do Tancredo. Escreveu o discurso, mas o cara morreu antes da posse, como toda esperança. E que preguiça era o sol das 14:45 que ia junto morro acima, pisando a poeira vermelha onde escorria e se remodelava. A boneca sem pescoço e com uma perna mais curta que a outra. Parecida com a personagem daquela outra história, patrocinada por essa bebida maldita que engulo ao longo de todos esses anos. E de novo o discurso:

Cores para noites sem lua