26 novembro, 2008

Seca

Chegava o tempo de frio. E frio também não fazia. Mas faltava a liqüidez do pensamento e só restava a sede. E a garganta em experiência do árido. A terra na dureza de si mesma e do que nela vivia e que não pedia mão e suor. Terra de vontade de vida só.

21 novembro, 2008

Lunar

E ela não foi vista. Somente se via as sombras por entre as folhas, criando formas, arguindo a imaginação. A mão, aquecida por uma vontade de carinho, frágil e intensa como um acontecimento, um instante que já passa ao longe, soprando nos cabelos, uma saudade guardada nas unhas.

14 novembro, 2008

É pesado o lápis. E as mãos se dividem entre os operários em frente à reitoria e os bailarinos. Inquietas por levantar vôo papel afora, parede e memória. As mãos desconhecem a gravidade.

Preciso urgentemente de caneta por quem meus dedos se apaixonem. Que ela tenha a velocidade que é livre dos atritos dos pensamentos. E que deixe minha mão insone de amor pela tinta com que desenho a alma do mundo.

03 julho, 2008

E todas as vezes que empunho um cigarro acendo as palavras. Os percursos da fumaça são livros, as escritas, mapas de lugares inexistentes, a tentativa de um caminho, de volta ou de ida. Ao tabagista é dada a observação criteriosa da falta de critérios do surpreendente e, se viver é um susto, existe prazer na taquicardia. E na palavra que virá depois, deste cigarro.

26 junho, 2008

Dar de graça o que de graça lhe foi

Era muito religiosa, ela e o marido, um homem de fé. E agora estava ali, em frente ao restaurante freqüentado pelos boêmios, caminhoneiros e cafetões. E, às margens da rodovia, se dava gratuitamente a quem passasse e a quisesse e com eles compartilhava o vírus recebido do marido.

25 junho, 2008

Erudição

Era semi-analfabeta, escrevia o nome com uma letra trêmula e insegura como a própria vida. Mas possuía outras escritas. As músicas que cantava e vinham dar cores mais amenas ao presente nada gentil; as suas mãos, sabedoras de cor da feitura de doces e pães e que, tendo comida ou não, cozinhavam; e os seus silêncios e seus ditos, oportunos como chuva em julho.

As ruas

As ruas seguem paradas e silenciosas. In. Diferentes ao movimento e ao barulho do que é jogado e se joga em suas correntezas.

Samambaia

A planta era observada com um brilho de amor resignado, amor que espera. Não se viam nitidamente os sonhos que a povoaram. Teriam partido todos? Cozinhava bem, prova disso era o angu, que as crianças magras e sujas disputavam com os cães, como irmãos. E na monotonia dos sentimentos e dos acontecidos, observava os brotos e, por alguma secreta razão sabia que era ela que surgiria com as folhas que se anunciavam. Algumas coisas, como o que tinha em seu interior, continuavam crescendo. Sem sentido. E para todos.

10 junho, 2008

Almafoda

Se aconchega.

Ao macio e ao áspero.

Ao céu e ao inferno.

E entre céu e inferno,

entre o que acarinha e o que fere,

um corpo em outro,

a alma em seu fim.

03 junho, 2008

Interação

E, mesmo que reste o medo, ainda há o desejo desse céu de nuvens de tempestade que não encobrem a multidão de estrelas que me povoam. Porque o mar eleva e mostra os limites. A mão alcançaria o sol e poderia mudar a lua de lugar. E queimo as pontas prateadas dos meus dedos.

Liquido

Desejo mais uma vez o seu corpo porque ele é de água e caminho pelo mundo e tenho sede. Vou já e ainda agora em minha companhia buscando o não visto e o não tocado. E você é água. Busco as trilhas que desembocam nos barrancos e nas cachoeiras de você, onde me encosto e me refresco e o sinto escorrendo por meus dedos, em busca de mar, retirando do caminho pedra e pau que das mãos tenham rolado para fabricar represa. Porque seu corpo é feito de água e se vai, leva junto.

30 maio, 2008

Vacina

Quando sofro de apaixonamento tenho febre como em gripes. E tendo decidido definitivamente pelo não me sinto prestes ao sim. Ainda espero que das pessoas venha algo de novo além dos vírus.

20 maio, 2008

Uma cebola e um limão

por Bem

Uma vez, num lugar nem tão longe do que você imagina, tinha um menino bem normal. Ele vivia em uma pequena casa com sua família, irmãos, pai, mãe, cachorros, galinhas, baratas e os colibris. Podia dizer que era mesmo um menino totalmente normal. Tinha uma família normal, um olhar normal, cabelos normais, andar normal, tudo normal. Ou quase. Aquele menino chorava muito. Mas não era chorar de dor ou de manha, como talvez se pudesse pensar. Se perguntasse aos amigos dele, todos iriam dizer que ele era um menino muito forte. Sabia jogar e brincar, como todos eles, e também brigava, como todos eles. Não, não era esse choro. Se não estava jogando futebol com os amigos ou fazendo alguma outra besteira divertida com as outras crianças, o menino olhava. E por olhar o mundo, e só pelo fato de olhar, ele chorava. É que os seus olhos grandes e marrons sempre queriam perguntar algo, mas não sabiam o quê e nem exatamente à quem. Enquanto pequeno, ele e esse seu jeito nem eram tão ruins. Tinha sempre bastante amigos com vontade de brincar, jogar e se distrair. Todos o conheciam e sempre o conheceram assim já haviam se acostumado. Para as crianças, alguns são assim, outros assim, e cada um é o que dá conta de ser. As pessoas grandes é que são mais complicadas. Quando se é maior que os outros – e pensa ser maior que os outros – qualquer jeito de ser que é diferente, que poderia ser perturbador é facilmente classificado e desqualificado, sem tocar em si mesmo. E as pessoas grandes classificam aos que não compreendem: ou são crianças ou loucos. E o menino começou a crescer e também ao seu redor as coisas e as pessoas mudavam. A cada dia havia menos pessoas com tempo para brincar, outros, já haviam se esquecido de como fazer. As pessoas desaprendem facilmente a se distrair e divertir. É preciso treino. E, a cada dia, surgia mais gente, desconhecidos e desacostumados ao jeito que é do outro. E as pessoas estranhavam aquele moço chorando e perguntavam: por que ele está chorando? E o choro, sem causa óbvia, implicava uma questão: porque chorar? E mais uma: porque eu não estou chorando como ele? E é claro, as pessoas começaram a se distanciar. Não queriam se perguntar essas perguntas. O moço não entendia porque as pessoas se afastavam dele. Era o de sempre, olhando como sempre. Não sabendo mais como se ajudar, ele começou a levar sempre uma cebola no bolso. Se alguém estivesse por perto, tirava a cebola do bolso e começava a cortá-la. E as pessoas já não o estranhavam mais já que é normal chorar quando se corta uma cebola. E a pergunta: porque ele está todo dia cortando cebolas? Não era feita. As pessoas estão sempre fazendo algo, mesmo que não faça sentido, estão sempre trabalhando em algo. E por serem muito ocupadas e talvez porque lágrimas de cebola não têm muita importância, não se incomodavam mais com o choro do menino. Talvez alguns poucos se perguntassem: porque ele sempre está cortando cebolas? Mas, também estes são ocupados e cheios de coisas por fazer para que se distraiam em buscar respostas para perguntas sem importância. E assim o menino viveu, de um dia para o outro, de uma semana para a outra, o menino e sua cebola. Anos se foram e, um dia, meio nublado e com só um pouco de sol, ele estava sentado em um parque. E já com a cebola nas mãos começou a se dedicar ao que estava em volta e via, com aqueles olhos tristes, o mundo. A sua postura mudou, um momento de reparo em seu olhar. Sentada em um banco, um pouco distante, mas nem tão longe, havia uma menina que olhava em sua direção. E era uma menina totalmente normal, com um leve sorriso em volta dos olhos. Mas o menino tinha reparado com o seu olhar um limão que havia nas mãos da menina e que ela parecia chupar de vez em quando. Sem poder se segurar, o menino levantou e seguiu na direção da menina que foi ao seu encontro. Tinham no peito uma sensação desconhecida, uma ansiedade leve, a imagem de uma coisa sem nome, do fundo e do além de si mesmos. Sabiam por que um levava uma cebola e a outra chupava um limão. Os dois se encontraram em um caminho, sem saber se era meio de começo ou fim, e deixaram, por alguns instantes, a cebola e o limão e seguraram com firmeza a mão um do outro. E é provavelmente isso o que os dois ainda fazem, segurar as mãos, viver num lugar totalmente normal.

19 maio, 2008

E o que faço nada mais é do que dar respostas para as perguntas que você talvez me fizesse. E hoje é um daqueles dias em que seria muito difícil engolir algo além da própria saliva e, por isso, não tenho tido fome embora tanto coma. E hoje houve o homem. Morto. O vi de relance, voltando da festa de aniversário da amiga com quem briguei, a que havia dado o entendimento do deslumbramento, aquele baile em que os dois se deixariam. A amiga que sempre seria. A que desafiou o enfrentamento do que é só costume e me guiou através dos carros e dos lugares que certamente levariam a outros. Ali estava porque, mesmo no que simplesmente passa, há brilho conforme há luz. E agora, é ela quem surge, com o questionamento que grudou na idéia, bem antes de sua morte: feliz serve é pra quê? E era aquele homem. Morto. E se as vezes penso em lhe telefonar ou escrever é porque aos animais de linguagem só é dado criar no dito.

Outras considerações sobre o cigarro

E as criancinhas, exploradas pela indústria tabagista, são mais um motivo para que eu mesma enrole os meus cigarros.

Big Bang

O alfinete, cansado de carregar essa caixinha de apetrechos de costura às costas, perdeu por fim a cabeça. E é aí que começa essa história de existir.

13 maio, 2008

Contatos imediatos

E escrever é só isso mesmo, esse puxar assunto com o silêncio...

Paraíso

E, se Adão foi feliz, que se dirá de Eva, livre de preocupações com processos depilatórios, sedutórios e acessórios e, o mais importante, sem a fumaça fedida e o humor tão sutil e delicado dos caminhões. E havia ainda o sogro, que era um pai e cirurgião plástico. E não comprou presente de dia das mães pra sogra.

07 maio, 2008

Gol

Na serra, raposa e sol. Uma zaga imperial pergunta: tanta terra pra índio pra quê, se ele come que nem branco e cria gado também? E esperto é quem enxerga que gente é mesmo tudo igual. Só no matar é que se diferem. Quem sabe o valor da vida, respeita a morte e, se mata, olha no olho e come. E na terra do futebol, com seus travestis e suas fraudes, dá dinheiro a violência, que é sempre consentida nos estádios, e, a paixão nacional é tanta que extrapola, vai pras ruas. E quem ganha? O platinado da vez.

Os postais

E sabia, essa saudade vinha de longe... O pai sempre nesse trabalho de viajar. Era esse o homem nômade vindo da África, chegado em Curitiba, de onde trazia pros seus olhos, ficados no aqui, flores com seus relógios, uma ópera de arames, ônibus tocando sanfonas, limpeza e organização, muitas livrarias e um violão. E era a aprendizagem de que a saudade deseja mesmo o em quê ainda não pôs as mãos, dos olhos ou do corpo.... Uma saudade sem contornos do que ainda é desconhecido.

03 maio, 2008

Uma cor para um gato em branco

Era a companhia perfeita para uma tarde de sábado, com cinco ou sessenta anos: gatos e música. O Arnaldo Antunes foi presente, dado por mão querida que compreendeu o significado de um desejar, esse sufocamento de palavras na garganta em busca de ar, essa Felicidade Clandestina que é, não tendo com que escrever, ouvir no silêncio quem diga: compreendo, sei como se sente. E como não ter aos pés de si a presença de tudo o que se foi? Nada, além dos peixes que me nadavam, se esbarrando, se tocando, submersos e levados por esse fluxo silencioso e turbulento, a busca de piracema em plena seca. E, no agora, desejo é encostar em algum conforto e adormecer, sem hora, motivo ou comprimido e seguir viagem, em aconchego de colo, pouco importando o que aconteça no fechar dos olhos. Porque as paisagens já saem pelos ouvidos e, se continua, é vômito na certa. E por isso existe a noite... Porque aqui, no agora, os carros são muitos, as cores são muitas, os cheiros são muitos, o barulho é muito e, inteligente é quem aprende com as galinhas e as codornas o respeito ao silêncio. Não hesitaria em trocar as panelas e quantas garrafas houvessem por aqueles pintinhos e a saudade das corujas e de seus olhos que caçavam. E os gatos. Sem engano, o primeiro foi aquele..., morto no quintal. Ou teria sido o outro, o lembrado em cama de hospital, enquanto esperava a injeção que doía muito e coloria o dever do jardim, trazido em horário de visita... Fazia às pressas o dever, enquanto ouvia a voz da mãe: primeiro a obrigação, depois a devoção. E percebo que o homem é mesmo obrigado à liberdade. Acabar logo e se dedicar ao prazer, ao gostoso guardado pro fim, os detalhes. Ao lado, a gentil enfermeira advertiu: não existe gato verde! E sensata: colore de marrom. Bem sabido, não existem gatos verdes, mas, o que fazer se mesmo em caixas de trinta e seis, ápice de um desejo de posse, não encontraria a cor vista? Verde é o que se aproxima. E qualquer criança saberia, freqüentando reuniões de sem casa, que pobre tem direito a dizer o que pensa, mesmo que tenha que pagar com a voz. E só por isso disse à madrinha, de quem recebeu o filhote de gente, o que sonhava e pedia pra mãe, papai de onde fosse, coelho de que data seja, qualquer estrela que passasse, cadentes como coração, e pras portas que se abriam para as vãs e supérfluas esperanças. E, tanto esperou que cansou. Não teve jeito: foi a última, no definitivo. E como não ter amor? Como não querer bem? Mas a vida é para todos. E disse a ela o que o pai havia feito. Aceitou a dor em dobro porque vivia em dobro. O gato foi colorido de verde. (...)

Seca


a Chuva, cheirando à esperança e calor
a Terra úmida, como língua em lábios.
E a alma inundada pela vontade de germinar.

Escultura

A linguagem precisa ser lapidada porque a poesia não é só dizer.

É a precisão de dizer.

Escriba

Traduzo a dor e a agonia, a angústia e a obsessão.

As vigílias insones necessitam de palavras, o prazer não.

02 maio, 2008

Civilizada

Hoje falei bonito de amor... Falei grego... E, para o que a civilização não basta, existe o beijo.

Enamoramento

Oi, demorei? Um pouco, pelo menos para quem foi privado de sua companhia. Então, vamos descontar o tempo perdido? Quer um cigarro ou divide esse comigo? Prefiro dividir, assim vou descobrir seus segredos. Um cigarro é pouco, tenho muitos. Quais você quer? Os sórdidos. Você já fica logo com o pior né? Quando tinha onze anos, roubei a sineta de avisar o término dos tempos da escola e a escondi na caixa de descarga do banheiro. Alguém achou? Acho que não. Deve ter sido o meu recreio mais demorado. Sentiu medo? Não, amedrontei depois de envelhecer. Mas a espontaneidade salva de ter medo e de saber o porquê do medo. Sou impulsiva, e muito mais antes. Agora já foram inventados os freios e, apesar de introspectiva, sou um redemoinho à procura de um que fazer e com quê entreter os sentidos. Embora introspectivo, sempre fui tranqüilo. Fiquei inquieto e ansioso depois de velho. (Silêncio) Obrigada. Não se agradece esse tipo de coisa. Não, e o que faço? Faça mais! Mas, se agradeço justamente o que é gratuito... (Silêncio) Também me arrisco vez ou outra. (Silêncio) Um cigarro. O meu está acabando (...) É. Eu sempre descubro um lugar precisando de conserto e quero ver logo as coisas se parecendo com alguma coisa ou com ela mesmas. E, no fim, vejo que sempre falta o principal. A fumaça é tão sólida quanto o pensamento e acho que inventei a roda: um macaquinho feliz! E restam 3 cigarros. (Silêncio) Como é isso? Não sei. Mas como é isso aí, poder da mente? Também não sei. Eu vou mexendo nas coisas, provocando, até elas fazerem o que eu to pedindo pra fazerem, normalmente resulta em merda. As mãos guardam bons mistérios. Você não sabe não fazer poesia? Qualquer letra que vem de você me torna cancionada. Suas palavras. (Silêncio) Você tem dinheiro? Só para o cigarro. Dependendo do cigarro, vale muito. Um raro prazer em séries de vinte. Na maioria das vezes, nem para o cigarro. Foi um tanto Monalisa, não acha? Sorriso contido... Foi? Tinha sido. Mas agora é como o pensamento em você, com bastante dentes, todos que tenho. Não está com sono? (...) Todo cativo é como o de Camões? É? Espero que não, deve ser dolorido, uma bola de ferro bem pesada presa aos pés. Você me hipnotizou outra vez e, creia, te respondo com os olhos. Conheço esse brilho de que fala... e penso que são como janelas essas janelas e, por elas, agora que é noite, eu não veria os seus olhos, mas a minha pele é quem me dirá do seu brilho, o brilho que entra pelas minhas janelas e me toca. Com esse brilho que irei adormecer esperando ser por ele de novo atingida. E quem sabe de uma próxima, preparado, eu não seja uma presa tão fácil e me sobrem algumas palavras. E ainda tenho que falar sobre... Realmente. Amanhã. É dia.

Existencialismo

E o que somos a não ser a consciência do que somos?

Sobre o cigarro e sua fumaça

Em sentido ao rio, desaguando em Diogo.

Perguntou àquele que apreciava, no dentro de si, o girar da terra ao seu lado. O que sente quando fuma? Prazer. Em uma palavra, o que sinto é prazer. Mas é um prazer meio doído, não é não? Porque é como se os pensamentos se tornassem visíveis, como a fumaça e as idéias... e aí, no instante de algumas eternidades, nós somos a fumaça... e me lembro de que também eu vou desaparecer... Ele sorri. Ela continua, é uma saudade antecipada...

01 maio, 2008

Desejos

Desejava.

Deseja muitos e ninguém.

Desejava corpo.

Pênis, dedos, língua.

Desejava o arrepio, o desconforto,

A indignidade e a liberdade do prazer.

Desejava mais.

Desejava sempre.

Desejava a impossibilidade.

A suposição: passado e futuro.

Desejava a esperança.

28 abril, 2008

24 abril, 2008

Frutífera

As frutas apavoram quem muito de perto conviveu com elas. Conhecendo bem os morangos se sabe os desejos que despertam pelo nariz. Das ameixas, se sabe Insã e Xunim, trazidos pelos morcegos, e das goiabas, o que vive e se move por dentro. As jabuticabas trazem as longas esperas da vida e, as bananas, essas coisas corriqueiras do dia-a-dia que não pedem muita atenção. As maçãs e os figos, dependendo da terra, são miúdos e improváveis, como gosto do que não se pode ter. Os limoeiros são flores e um cheiro. E uma necessidade de espinhos pontiagudos. Amoras são tintas. E ainda me mancham corpo e papel. E por tanta intimidade o temor do gosto de todas elas. O arrebatamento, peixe fisgado de anzol. Um tempo de não saber ser só. Um gosto de infância.

Transporte

Se escrevo em ônibus é porque a palavra está em movimento.

22 abril, 2008

Profissão de fé

E também creio, como creio que foram enviados para salvar o mundo, que os Beatles voltarão.

Em um transatlântico.

17 abril, 2008

Perspectiva

E se o mundo é feito de penas, existe em mim um céu de sanhaço e uma esperança salpicada de alegria e desejo de maracanã.

A vida é beija-flor.

15 abril, 2008

Pela descriminalização do aborto

Estava sentada em um ônibus. Oscilava entre a preguiça cansada de mais um dia e o desconforto da viagem. E ouvia a conversa mais próxima. As partes se colocavam a par de suas desventuras até que veio o desfecho: A minha irmã morreu, atropelada. Estava grávida de gêmeos.

Fumacinha

A poesia vem como névoa, flutuante nuvem.

A acolchoadora de mundos.

Ágrafa

Sou a sem cultura e linguagem e o pouco conhecimento que tenho do mundo não diz do que sinto e que mata e priva de ser um entre o tudo ao redor. E não é possível a entrega ao mundo onde todos são corcundas e em que as pernas dóem por não poder esticá-las.

Outra flor

Presenteada pelo céu e por tudo o que acima dele vive. Uma flor! Dada por mão azul. Uma flor pálida, exaurida, fatigada no ter se cumprido. E viu o amor por uma beleza de forma tão intensa que tudo em resto era tão somente a artificialidade. E é impossível não desejar o silêncio. Mas é bom brincar com as palavras.

Arte não mata fome

E o calor que envolve traz a plenitude por desejar tanto. Pela visão involuntária de controle remoto foi dado o sabor. E o que se via com todos os sentidos era uma espuma lilás em meio à calda de cor do que é cristalino e com a fragrância deliciosa do ignorado.

14 abril, 2008

Declaração de amor

Na verdade é só uma história. E história conta o só o que já foi. O que é, no agora e no ainda, é por conta e risco de quem pensa... Era uma menina confusa e atrapalhada em ser o esperado pela história, e que insistia em não ser o que nasceu para e que ainda não sabia. Era como as outras, e em muito, muito diferente delas. Não aprendeu no cotidiano das coisas, com bonecas e panelinhas. Aprendia em segredo de silêncio diante de espelhinhos gigantes, em que se via inteira e tão pequena e tão dentro, e dos outros, os de bolso, um pouco maiores e que mal comportavam o rosto e parte de seus cabelos. E com as músicas, quer eram as mesmas que todas gostavam, mas não chorava com nenhuma delas e nem de machucado. Chorava muito, mas era mais de raiva, de não saber como fazer as coisas, de não entender, de injustiça e de por ver novela também. Gostava muito de rir e de sentir preguiça, mesmo sabendo que era pecado. E desde o sempre existem meninos e meninas, mas só no depois é que foi inventado o que podiam e o que não podiam fazer. As meninas sempre foram a visão do que sempre dividiu. Achava esmalte feio, mas também achava bonito, principalmente quando ele, já se desfazendo, deixava à mostra a imperfeição e a matéria pura de que gente é feita. E poupava à agonia de ter que tomar decisão de destino para a mulher que se esgueirava com languidez longilínea de gato roendo as unhas. Bonitos eram os cabelos longos e lisos. Mas, para que assim fosse, deixavam o rastro de fedor da submissão só possível em homem que finge ser macaco para divertir platéia. Os cabelos eram o desafio, a constante necessidade de conversão. As roupas sobre a pele como se tivessem sido emprestadas ou dadas, pelo acaso. E, talvez por isso, um gosto tão maleável. E até no mesmo de todas as outras - a mesma saia azul de pregas e a blusa branca-, sabia que o igual de todo mundo não era feito para ela, não tinha as suas medidas. Temia a prisão e o sufocamento do seio, só submetido ao sutiã pelo pudor de uma blusa de uniforme transparente que não o podia ocultar de si mesma. Se sentia diante dos outros como o espantalho com aves sobre os ombros e se habituava, com a descoberta e a necessidade de aprender a manusear absorventes íntimos e o corpo com sua fluidez de gota em busca de mar -, a conter uma mulher e seus desejos. Havia aprendido pelas histórias que deveria se fingir de morta e esperar por beijo que a salvasse. Mas como, se ela queria era ir salvar o mundo também? Com os cacos de seus espelhinhos tecia tapete sobre as distâncias acidentadas que percorria descalça e fazia pontes. Havia um amor, o mesmo e que sempre a faziam ficar ao lado de alguns e a se deixar. E não era amor de figuração, desses que são guardados em álbuns de retratos e em películas, esgarçadas e finas, tão finas que nem se sabe bem se é lembrançae ou esquecimento. Amor de entrega, da compreensão e da aceitação. Amor que é passageiro, com brilho da surpresa de espera dos olhos com encontro de estrela cadente porque, no sempre, é muito para uma vida que é só isso. Era a intensidade marginal da mulher que torna seres reais entre beatas e fêmeas, Ariadnes e Iaiás.

Garrafas ao mar

Areia a exasperava. Tinha ódio de tirar os sapatos encardidos de poeira e uso e pisar chão em nudez. Os menores grãos e ciscos a despertavam, toda pés, se esfregando em si mesma, tentando se livrar do sentir. A dona da casa, entre a agressão e a ofensa: Repara não! Nem tive tempo de varrer a casa hoje... Sabe como é, né? Se desfazia em desculpas, justificando em distração e avoamento a delicadeza de sua pobreza, demais sensível, para qualquer gosto. Areia era o toque do indesejado, o incômodo indistinto entre o ruim e o bom. E em areia pisava para chegar ao mar. E lhe trazia as mensagens ilegíveis e das mais possíveis urgências e ansiosas, não de socorro ou salvação, mas do eco que lhes diga que o sacrifício das ilusões não é vão. Abrindo as garrafas voltava àquele cemitério, o que antecedeu todos os outros, em que ia de visita ao túmulo da tia suicida de uma prima esquisita e que a considerava como igual. Talvez adivinhando o que já sabia de viver e, que mesmo assim, achava tão bom que precisava de um pouco de morte. E abria os papeizinhos que encontrava sobre os túmulos como se seu nome ali estivesse e por ela chamasse. E lia e relia a sentença da repetição. E, por via das dúvidas, repetia. E voltava, e outros papéis abria na esperança de encontrar, gravada em tinta, a absolvição por ter comido maçã. E despojava a pretensão, se aceitava ar, espaço a ser vencido e em que se propagaria. Eco. E bebia das garrafas, grão a grão, todo um oceano.

Pecado

Eu, que falho até em respirar, não me habituo ao erro. Nego o erro e, ao negá-lo, me perco na impossibilidade do acerto. Me fiz nas mentiras, nos furtos e nos mortais pecados infantis. E será mesmo o pecado o primeiro entendimento da vida? Fato é: existo. E não se pode comer o fruto da árvore da vida.

Plantação

Iniciei o outono em janeiro e arei minha cabeça. Colhi os cabelos para que nada houvesse, em maior profusão, do que o pensar, que haveria, por ser semente de plantio, de florescer.

04 abril, 2008

O guarda-chuva


E também ela, certa vez, com um guarda-chuva que quase a levava pelos ares, teve medo de morrer. E que outro querer mais poderia ter no mundo o que vive? Mas queria morrer no meio de sua gente. Medo mesmo não era de morte, era da falta de olhos de agradecer e ter saudade. E por isso estava ali. E sempre existiu no peito, desde o guarda-chuva, o desejo de ser levada e ser, ela própria, o vento. Mas, mesmo assim, voltaria e os protegeria de seu temor. Tinha olhos de agradecer e guardar saudade.

27 março, 2008

A festa

E assim deveria ter sido: só uma festa. A busca de diversão por deuses entediados de eternidades. A bebida e a comida para saciarem fomes e sedes milenares. E eu, intrusa e inadequada. Eu, matéria perecível, em meio aos iniciados construtores de mundos. Diante do eterno o meu tempo era finito e escoava rapidamente trazendo o último instante. E, no último instante, decidi viver. No tempo dos deuses era a timidez e a agonia de não ter tempo e medida. Sim, era a festa da criação e cada mínima insignificância era plena e orgulhosa por ser. Só eu não existia e, não existindo, eu era. A síntese da negação, o erro. E por isso respirava, ofegante, a falibilidade. Que deus poderia se responsabilizar por mim? Que deus poderia, deliberadamente, ter criado este corpo, cheio de ofensas à minha vaidade, e esta alma, plena de pecados por cometer? O autor erra e, se erra, é humano, decaído ou livre? Porque em seu livre arbítrio se faz sádico e se permite a imperfeição e a usa, prepotente, para ostentar sua onipotência. E, sequer matéria, me vejo instrumento de serviço. Formão, lixa ou espátula. Nem sequer barro, ou água, ou terra. Nem sequer poeira ou resíduo. Não sou a serva do senhor. Sou ferramenta, a espera de mãos que me permitam ser. E temo pelo mundo que vem através de mim, o mundo entalhado, perfurado e sulcado por mim. E, se pudesse, o protegeria da minha agudeza e mesmo sem saber, sem merecer, rezaria às mãos para que fossem suaves, que tivessem dedos e idéias delicadas. Mas sou só instrumento. É inútil o sentimento inverbalizável. É inútil a estupidez só possível ao que pretensamente pensa como seria inútil ser humana. Aos instrumentos não é dado planejar a obra. Construo e destruo conforme ordena a mão do deus que me guia.

25 março, 2008

Passa-tempo

Escrevo brincando de campo minado.

Procuro as palavras a espera de encontrar a H.

A palavra silenciosa que calará todas as outras.

Minas Gerais

E também, e ainda, há susto se vejo pássaros e os ouço nessa constante ousadia de voar em meio aos desejos confessados pela existência. E não posso deixar de pensar: esta terra é mesmo de liberdade.

Romantismo

Para que o coração seja aberto vale faca, estilete, machado ou chaves. Mestras ou de fendas.

E são bem-vindos maçaricos e explosivos. E os dentes.

23 março, 2008

Janela

E como só pode o que vive, experimentava o cúmulo da dor e do prazer. Perdida a janela de onde via o próprio mundo. E não alcançá-la era já o desespero. A angústia de saber um mundo sem ter de onde que o pudesse ver. E, se não fosse essa, nenhuma outra serviria agora. Em ânsias de maldição, no prestes a ruir, eis, escondida sob a cama, jogada ao canto, abandonada pelo excesso de intimidade e contato. E as lágrimas de frustração eram a alegria. De novo havia a possibilidade do mundo. E o poderia ver bem de lá, dela: a felicidade clandestina.

Fatalidade

Se encontro a felicidade na brevidade de um amor não correspondido,

morro mil vezes, a cada flor ímpar que me sentencia mal-quereres.

Amor grande é o que se começa de pequeno.

E os homens que quero ter são os impossuíveis.

Trânsito

O trânsito é a iluminação, em direções e equívocos. Os transtornos esperados, acidentes possíveis. E o pensamento feito só de poeira, sons indistintos e movimento.

Obviedades:

  • Fluxos sangüíneos sempre se acompanham de dor.
  • Gatos, quando brincam, nunca têm sua ferocidade levada a sério.
  • Mãos destróem arrumações e pés, sapatos.
  • Pessoas são perecíveis, os sonhos delas não.
  • O que não entendemos não faz o menor sentido.
  • Masturbação é o sexo que dispensa antes o que seria dispensado depois.
  • Gatos são seres auto-clean.
  • Banheiros e roupas não são seres. E nem auto-clean.
  • Os livros só sabem o que foi contado para eles.
  • Intelectualidades tropeçam em inteligências.
  • Coisas inteligentes são óbvias.
  • Coisas burras também são óbvias, mas se travestem de grandes descobertas.
  • O que menos importa é o que mais vale a pena.
  • Cabelos, principalmente quando não existem, inspiram a ternura dos dedos.
  • Para fazer xixi em meio às plantas é necessàrio um vaso no banheiro.
  • Antes uma chatice só do que as acompanhadas.
  • A palavra explica o que ela não é.

Ponto

As exclamações deveriam se calar. Só o que indaga diz.

Jardineira

Em erupção de cores e cheiros, uma promessa de sentimento.
Todo amor.
Todo perfeito.

Oculta

A delicadeza é matéria de segredo. Tesouro guardado pelas palavras cuspidas como fogo. Fica ao canto, no final de um corredor, bem à esquerda, atrás das lanças dos olhos. Pertence aos que a adivinham, entre os escombros e as ruínas. Em busca de ser encontrado é mito com memória de sido.

22 março, 2008

Mutismo

A insubordinação das palavras em "quês" enoveladas. Nunca dizem o que quero. Sempre caladas.

Abjeto

Ódio ao cotidiano que dilui todas as dores e todas saudades. Que evapora a indignação e o já parco e gasto senso de justiça dos homens. Ódio ao cotidiano que rouba a sensação do vento e um antigo e primário desejo de voar. Ódio ao cotidiano que verga tudo o que cresce e cospe, na cara dos seres racionais a racionalidade dessa vida irracional.

Carta

Terra, Te escrevo para dar as notícias do que não sei, já que, o que sei sempre se desfaz diante das lembranças. As ruas, as noites e os telhados permanecem iguais. Talvez, mais empoeirados, como tudo o que, embora mude, permanece. Me faço o sentimento e você. A grama continua rente ao chão e ainda não a vejo em árvores e os gatos se tornaram boa companhia e professores. Aprendo as gatices de seduzir e a sofisticação da preguiça, a buscar os prazeres de uma existência noturna. A ouvir os chamados da noite. Ser fora do próprio tempo. E, não mais somente durante as noites, desperto com seus passos e para o seu beijo. A maioria dos dias que moram em mim continuam sendo os de sol, mas sinto chegando os amores pelos dias de chuva, esses exercícios de saudade que permitem a visita ao tempo em que somente respirar já era viver. E no calor, ou na falta dele, nas cores intensas, e nos aconchegos nublados, dos meus olhos os dias pedem beleza para a dizer aos seus. O ritmo da vida dita passos de uma dança feita para os meus pés em você e percebo essa brutalidade delicada que me leva por entre tantos como se não existissem e me deixo levar, e ficar, pela pressa e a preguiça de existir em multidões e em ilhas. E também levo comigo o sono das manhãs, as inspirações das madrugadas e a poesia de todas as tardes, principalmente as de céus alaranjados com nuvens cor-de-rosa e roxas. E, mesmo quando o choro antecede o sono, não me esquivo de sonhar realidades. Caminho sempre por renovadas ruínas, pelos escombros da humanidade em erupção e entre eles, encontro esses tesouros travestidas de cotidiano. E todos os dias, nesta hora, nesta cadeira, chego ao mesmo lugar. O lugar de que saí e de onde reinvento o de onde vim. Chego ao lugar de te deixar partir. O lugar em que terminaram seus passos que sigo, procurando alcançar sua chegada. Um lugar de se perder. Uma bola. Um quarto no meio do tempo e do mundo. Fica a ausência.

Costura

Sempre útil ter à mão agulha e linha, a fim de prevenir do imprevisto e já saber o conserto certo, remendo do de nem se ver e notar. E também uma certa arte. Costurava. Sentia prazer no desmanchar das coisas prontas e no ter que fazê-las por si mesma. E também gostava de cortar. Empunhava tesouras e com elas picotava os mundos das páginas de revistas, coisas antigas encontradas ao acaso, tecidos baratos e fitas coloridas, as de lembrança e promessa, os três pedidos, milagres de amor, de saúde e de dinheiro. Mundos que se reconstruía na displicência do que é incerto e será desmanchado, no tecer, com os fios frágeis de emendar pedaços, a vida e um possível futuro. Perdida a conta das vezes em que se feriu com agulha e foi por elas desperta, recusando o sono dos séculos sem fim. E também, em um tempo, tesoura havia atravessado a sua mão, de um lado a outro. E viu o de dentro, sem recheio de maior interesse do que as bolinhas brancas, como de alguns brinquedos decapitados. E sem sangue. E por onde segue o isso que sei e penso e que sinto senão por sangue? Existiria? E por isso se buscava, colecionando as marcas e os cerzidos, os pontos e as cicatrizes, vestígios de uma exploração constante e ininterrupta.

O homem na varanda ouvindo ópera

Era uma rua que levava aos lugares enevoados que guardava. Longa e curvilínea, em que as muitas árvores, de copas como os quadris das negras, o da mãe e o próprio, ainda por ser mas que incomodava como destino oferecido por cigana, ocupavam a esquerda e a direita, o peito e o ventre. Saía de casa mais cedo que o necessário para chegar atrasada como sempre e inventava desculpas e pretextos para seus encontros. Buscava organização e método, que não tinha, para cumprir o ritual. Se lavava e perfumava para o vento que fosse com ela testemunha da partida do sol. E então surgia, noturna, toda célula de capturar o restante e o à volta, o que não era o ainda e nem o antes. E tudo o que desejava era não ser interrompida. Que nada ou ninguém surgisse em meio a caminho trazendo atraso. E antes da confirmação da noite, se acendia uma meia-luz que a atingia por inteiro. Protegia a sensibilidade com blusas de frio e se deixava levar pela descoberta do prazer feito por minúcias. A luz abriria a porta deixando passar o homem. O homem de peito nu, com os cabelos molhados e que pedia algo. E o que poderia lhe dar? O que tinha era o de não deixar ser visto. Pelos olhos o corpo chega, e o mundo vem, mesmo no escuro, mas só o que é visto com sentidos é que entra e nos mora. As copas, as folhas arfantes, as saias e as anáguas, entregues ao desejo de movimento que é brisa, que é vento, que é tempestade. A ópera. E o homem nu, que poderia ser um entre todos os outros, comercializáveis como jeans e geladeiras, era o que despertava o desejo de um além do depois. A nudez dele se vestiria de muitos corpos para trazê-lo ao desejo de não ser mais do que um. E os homens só serviriam se tivessem música.

O espinho

Era um menino muito corajoso. Suportava o espinho insolente que invadia sua intimidade e seu sentir. Mas chorava em seu sofrimento causado pelos espinhos que cercam flores e o das conversas fúteis, o retardo para as buscas mais urgentes da necessidade do que vive, o algo que em seu nome lute contra a própria dor, a que havia inaugurado com o choro mais sincero de estranhamento e susto. E é muito fácil se perder entre a dor e sua manifestação. E por isso ele agora volta. Consolado. E envergonhado.

18 março, 2008

Gatice

Algumas noites me tornam como os gatos.

E então, saio para caçar:

amores ou ratos.

Macia

As tentativas de amor são tentativas de existir. E os meus quase-amores são tentativas de você. Exercícios de afastamento, de se perder. E, sempre, e mesmo diante do seu silêncio, me prometo ser amada porque as desumanidades me fazem mais humana. E choro pelos cães ferozes que não posso afagar e pelos homens e mulheres de cassetete. A minha força me dói. Quero ser munida de doçura e suavidade para enfrentar a aspereza da vida.

Possuída

Os bichos que me tiveram foram muitos. Já existi como cão, grata por ter donos e pela mão amiga que afaga, enxovalha e alimenta. Existi como tartaruga, em ciclos improváveis, longos demais para humanos já desacostumados a pré-existir. Existi ave, sofrendo gaiola e carente do colo do vento. Existi peixe, submersa e silenciosa. E existo gato, consciente de que humanos fazem muita sujeira e não sabem se limpar sozinhos. Busco alturas, equilíbrio nas quedas e ardo em telhados. Desafio Murphy e a impossibilidade da gravidade. Sem uivos e sem gemidos a Lua me tem.

O bicho

Era muita sede. Chorava. Chorava muito e gritava em pirraça sem fim porque sua sede era sem fim. Chegavam alguns copos d'água, mas todos insuficientes para irrigar deserto. Nenhum estava cheio de saciedade. A sede, cada vez maior de esforço e necessidade, precisava de água que viesse de sua mão e com urgência. O padrinho, cansado do trabalho na olaria, estava deitado, se esforçando por dar atenção ao que ouvia de um rádio. Não ouvia as músicas ou o dito. O que ouvia era faíscas coloridas que hora ou outra saltavam do fio desencapado. E se esquecia do choro e da sede. Vez em quando caía uma lágrima que ia se juntar ao mar da outra, também desenganada de consolo. Examinava o rádio e se impressionava com o que via mais do que com o nome: Fagulhas! E por ser incontrolável o desejo de proximidade, retomava o choro em força e em intensidade. A dor por descobrir que nunca se pode ser perto o suficiente com garantias de segurança. E o pequeno estrondo trouxe o olhar do padrinho e junto seus ouvidos, que receberam a explicação: Esse bicho me mordeu! Mereceu a água que buscava, colo e acalanto. Mas o veneno nunca mais deixou seu corpo.

17 março, 2008

Destino

E, mais ao longe dos dias, ainda infantil e insaciável, olhava pelas janelas e em ânsias de ser perguntava à vida: tá chegando?

Preguiça

O menor vislumbre de morte me excita. Só morre o que vive. O susto não é a morte, é a percepção da não-vida. A plenitude do vazio, a ausência, as reticências. A palavrosidade em busca de saciedade e descanso no silêncio. Como a palavra, estamos sempre prestes ao começo e ao fim. A palavra que só quer, preguiçosa, a quietude de um repouso absoluto para um cansaço absoluto.

O Gato

O homem certo é leve, suave e preciso.

O homem certo tem a moral dos gatos,

Pede sem pudor: água, comida e amor.

Costureira



As palavras surgem como bordado,
se fazem delicadas pelas agudezas.
E de retalhos, e fios soltos, 
surge o mundo.




Eu, que temo as alturas, busco os telhados. Eu, que sempre fui peso, flutuo bailarina, como dentes de leão soprados de felicidade. Eu, com desamor às cebolas, as busco em jardins e enterneço com sapos e manjericão. Ouço a promessa de silêncio das músicas e sinto que posso respeitar as formigas e sua organização. Combino o cheiro do café com suco de abacaxi e esse cheiro ainda escorre em mim. Os limoeiros são testemunhas de um existir. As flores, sumo, perfume, promessas de bem-querer. De sempre querer Ben.

Óculos

No começo havia a luz que feria e a fazia chorar. E antes das palavras bailarinas e da insuficiência dos lenços de papel, buscava as hastes sem lentes, que usava como armadura. As molduras de ver de que não precisava, embora delas necessitasse. Não havia o defeito físico, ótico, o defeito era sentir. Excesso de sentimentos e de vida. O mundo, peso demais para um corpo somente corpo. Frágil carne e vísceras e fluídos. O olho nu era poro, vertedouro do suor pela fadiga em ser o que não se sabe. As molduras eram a salvação. Alinhavam o cotidiano, enfileiravam céu, cães, casas, pessoas, lixo, roupas, pão e vozes para que em si pudessem ser. Com suas molduras, distinguia o indistinguível e, tola e ousada, buscava caminhos não pisados em direção a todas as coisas. Fotografava cheiro de mato e de gente, dos desejos das gentes, as cores possíveis no escuro, hálito de vento e água. Mapas de para onde seguir e que não seriam mais do que névoa. Em algumas circunstâncias é possível o olhar sem moldura. Não para chorar, mas para ser atingida pelo excesso de claridade de todo começo.

Autofagia

Devorava a si mesma. Começava pelas unhas e, pedacinho a pedacinho, chegava ao coração.

O empório de doces e amargos que roía, mastigava, ruminava e que a deixavam plena de si.

Codificada

A tentativa de recuperar um pensamento dói mais que a incapacidade de pensar. A minha melancolia é saudade da alegria, a preguiça mental no meio das tardes em que era a menina invisível com um triste destino alegre. A que buscava passagens secretas para as secretas verdades das coisas.

Cores para noites sem lua