27 março, 2008

A festa

E assim deveria ter sido: só uma festa. A busca de diversão por deuses entediados de eternidades. A bebida e a comida para saciarem fomes e sedes milenares. E eu, intrusa e inadequada. Eu, matéria perecível, em meio aos iniciados construtores de mundos. Diante do eterno o meu tempo era finito e escoava rapidamente trazendo o último instante. E, no último instante, decidi viver. No tempo dos deuses era a timidez e a agonia de não ter tempo e medida. Sim, era a festa da criação e cada mínima insignificância era plena e orgulhosa por ser. Só eu não existia e, não existindo, eu era. A síntese da negação, o erro. E por isso respirava, ofegante, a falibilidade. Que deus poderia se responsabilizar por mim? Que deus poderia, deliberadamente, ter criado este corpo, cheio de ofensas à minha vaidade, e esta alma, plena de pecados por cometer? O autor erra e, se erra, é humano, decaído ou livre? Porque em seu livre arbítrio se faz sádico e se permite a imperfeição e a usa, prepotente, para ostentar sua onipotência. E, sequer matéria, me vejo instrumento de serviço. Formão, lixa ou espátula. Nem sequer barro, ou água, ou terra. Nem sequer poeira ou resíduo. Não sou a serva do senhor. Sou ferramenta, a espera de mãos que me permitam ser. E temo pelo mundo que vem através de mim, o mundo entalhado, perfurado e sulcado por mim. E, se pudesse, o protegeria da minha agudeza e mesmo sem saber, sem merecer, rezaria às mãos para que fossem suaves, que tivessem dedos e idéias delicadas. Mas sou só instrumento. É inútil o sentimento inverbalizável. É inútil a estupidez só possível ao que pretensamente pensa como seria inútil ser humana. Aos instrumentos não é dado planejar a obra. Construo e destruo conforme ordena a mão do deus que me guia.

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