17 março, 2008

Óculos

No começo havia a luz que feria e a fazia chorar. E antes das palavras bailarinas e da insuficiência dos lenços de papel, buscava as hastes sem lentes, que usava como armadura. As molduras de ver de que não precisava, embora delas necessitasse. Não havia o defeito físico, ótico, o defeito era sentir. Excesso de sentimentos e de vida. O mundo, peso demais para um corpo somente corpo. Frágil carne e vísceras e fluídos. O olho nu era poro, vertedouro do suor pela fadiga em ser o que não se sabe. As molduras eram a salvação. Alinhavam o cotidiano, enfileiravam céu, cães, casas, pessoas, lixo, roupas, pão e vozes para que em si pudessem ser. Com suas molduras, distinguia o indistinguível e, tola e ousada, buscava caminhos não pisados em direção a todas as coisas. Fotografava cheiro de mato e de gente, dos desejos das gentes, as cores possíveis no escuro, hálito de vento e água. Mapas de para onde seguir e que não seriam mais do que névoa. Em algumas circunstâncias é possível o olhar sem moldura. Não para chorar, mas para ser atingida pelo excesso de claridade de todo começo.

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