22 março, 2008

Costura

Sempre útil ter à mão agulha e linha, a fim de prevenir do imprevisto e já saber o conserto certo, remendo do de nem se ver e notar. E também uma certa arte. Costurava. Sentia prazer no desmanchar das coisas prontas e no ter que fazê-las por si mesma. E também gostava de cortar. Empunhava tesouras e com elas picotava os mundos das páginas de revistas, coisas antigas encontradas ao acaso, tecidos baratos e fitas coloridas, as de lembrança e promessa, os três pedidos, milagres de amor, de saúde e de dinheiro. Mundos que se reconstruía na displicência do que é incerto e será desmanchado, no tecer, com os fios frágeis de emendar pedaços, a vida e um possível futuro. Perdida a conta das vezes em que se feriu com agulha e foi por elas desperta, recusando o sono dos séculos sem fim. E também, em um tempo, tesoura havia atravessado a sua mão, de um lado a outro. E viu o de dentro, sem recheio de maior interesse do que as bolinhas brancas, como de alguns brinquedos decapitados. E sem sangue. E por onde segue o isso que sei e penso e que sinto senão por sangue? Existiria? E por isso se buscava, colecionando as marcas e os cerzidos, os pontos e as cicatrizes, vestígios de uma exploração constante e ininterrupta.

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