25 maio, 2009

Era um desses tempos que começam sempre no agora. Um lugar, parecido com esse, possível a olhos que passeiem por janelas. Sem muitos detalhes. Havia plantado ali o começo - borbulhante como um princípio, pulsante como uma vontade e inconstante como existir, sem julgamento de feio ou bonito porque esse era o que respirava e o feio o que deixou de ser, - do próprio encantamento. Mais bonito do que todos aqueles já vistos em folhinhas ou em quadros. Uma casa com um quintal que se dividia em duas. Uma coberta por cimento, a comprovação da civilidade, e a outra, terra bruta e nua, a pele fervilhante de vida que suspirava sua saudade de ser selva. E era ali o lugar de melhor morar, só uma saudade, e que faz o coração crer em paraísos, buscá-los e recriá-los. O mundo era visto de cima dos galhos, o maior conforto que flutuação em barriga de mãe, onde foi procurado outras vezes o abrigo. Mas alguns, ao contrário dos que partem, são os despejados. Alguns apreciam tanto o decorrer das coisas que delas não se saciam e precisam e pedem de volta o direito de pré-existir em maturação de ser casulo ou ovo que não se viola. É sempre o de dentro que sai em busca de mundo maior e não o mundo que invade casa, trazendo necessidade de tramela e cadeado e fé de que o que chega, explodindo o mundo que se dissolve em meio ao susto de outro, seja possível de se contentar com o próprio existir e permita, que por ele se caminhe, em busca dos pedaços de um mundo que se quer de volta. O lugar não perdoado por não mais caber o que foi. E o que resta é só o onde não se aconchegar ao espaço e ter sustento na segurança da queda que chama, como chamou os outros, e que, de tão constante, se faz chão. O chão que é amado porque dele se ergue e molda em mão de deus ou de valente que o valha. Uma metade era um flerte, o aprendizado de que todo amor, por maior que seja, não é tudo. Uma garagem com suas samambaias, uma varanda que se transformava em piscina e o entendimento de que, embora o corpo, essa necessidade de conforto e de tudo que com isso se pareça, higiene, fome saciada, intestinos regulados, rins e pulmões conscientes dos riscos do ar e do que leva e do que traz e um cérebro e um coração carentes de sossego de seresta e levados pelo descompasso da necessidade de inventar tudo o que já foi inventado e o ainda não, se misturar, e não achar ritmo de dança junto a nada além da vontade. Metade guardava oceanos e ilhas e o saber de que a terra tudo guarda, mas que a casa de tudo é o mar. Um jardim, o pé de manacá e as roseiras que mostraram a tristeza de ser cadáver tão jovem, com tanto de vida a perecer frente à leveza do se desmanchar com suavidade no decorrer de se ser. Um portão que foi muitos e que, conforme sua matéria, era o que encerrava. Ripas que deixavam ao alcance dos olhos a poeira da rua onde passavam as pessoas aguardadas e seguidas para os outros mundos que adivinhava. A poeira dos passos era guardada no próprio respirar e, bem sabida a dor de ânsia de adivinhação, vislumbrava que o mundo não é o bastante e antecipava o medo da asfixia. Respirava caminhar e vontade de partir. Quando chegou o metal e sua ferrugem, não ousou ferir as mãos e os pés, que se lançavam contra eles e, embora mais alto e impermeável, sem frestas ou furos, era insuficiente para conter. A prova de que nada há, alto ou forte o suficiente para ser proteção a menos que guarde o buscado. Testemunha muda e corroída da valentia e da covardia, da humilhação por não agüentar esperar até que fosse aberto. Urinava ali mesmo, na calçada, todo o medo com que sobrecarregava os rins. O mesmo medo que impediam a paz aos banheiros, o pior lugar para buscar a dignidade. O medo que fez com que desejasse o amor de deus, o capaz de resolver todo e qualquer tipo de problema, mas que nunca havia dado solução a nenhum dos seus. Se acostumou à realidade de que tudo é falível. A quem é dado o poder de aliviar as dores falta vontade. Porque só a quem a dor verdadeiramente doeu conhece e é capaz de enxergar a dor do outro. E também nisso se salvava por existirem as formigas e sua leve, mas suficiente, dificuldade de ver. Não perdoava os formigueiros e tolerava, por conhecer a própria força e covardia, deles as cicatrizes nos pés. Foi pelas formigas que deixou de ser, definitivamente, humana. Apesar de tudo o que havia acumulado e que entrava por todos os orifícios que encontrasse ou criasse, pingava, gota a gota, um esvair de si mesma. Escorria um pouco de si e deixava, em seu lugar, a descoberta de um novo medo, escondido nos outros, o de se acabar. E via o risco de, a exemplo de família, ser algo não dito pelas novelas e pelos programas infantis. A TV que servia para dar o pensar e o sentir de outras gentes pobremente inventadas e que nunca serão os seus. Se viu como de uma nova espécie, cruzamento de desamores com sonhos, desejo e necessidade de ser pessoa e uma crença na necessidade de cumprir destinos. Mas aconteceu no mundo a desgraça da escrita e da curiosidade, como um gosto de sede, que deixava na boca a saliva, saltando pra dentro dos olhos com o atrevimento de ser letra. Leu o alimento, que também era um ferir, e conheceu, desde o antes de tanto procurar, organizar e entender, o que era viver, mistura de saliva com o próprio sangue, os próprios galhos e sua futura brancura de superfície de mundo a ser inaugurado. Ou o mapa que haveria sempre de se tornar e que trazia as pequenas pegadas. O decorrer de outros vistos que se dissolviam com seu gosto de tinta. Feitiço mais forte do que o que acompanhava chouriço ao serviço e que nada no mundo das verdades feitas por magia desfaria. E por ter comido palavras, palavras vomitaria. E um estômago revolto lhe foi dado, além de um fígado e da dor herdada pelos condenados ao corroer diário, punidos pela águia, sucessora dos lobos e abutres, no ofício de derramar a bílis e o sangue dos que são a prova de sua insuficiência para apresentar o começo do se forjar, o calor mais intenso e frágil, sempre no prestes a se apagar. Aquela dor implicante, que trazia a compreensão a quem disse que assim era o amor, porque, tanto sentir, só poderia pedir pelo que fosse o além de tudo o mais. Sabida no testar em si. A vizinha tinha um irmão gêmeo e havia queimado praticamente todo o corpo por causa de álcool. E, por saber do que podiam as mãos e as cicatrizes, do sabão fervente no sol das três da tarde e do copiar do que não seria lido por faltar detalhes suficientes sobre o fazer das coisas, as deixava descansar da escrita. Os detalhes seriam dados pelas retinas que leu.

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