E assim deveria ter sido: só uma festa. A busca de diversão por deuses entediados de eternidades. A bebida e a comida para saciarem fomes e sedes milenares. E eu, intrusa e inadequada. Eu, matéria perecível, em meio aos iniciados construtores de mundos. Diante do eterno o meu tempo era finito e escoava rapidamente trazendo o último instante. E, no último instante, decidi viver. No tempo dos deuses era a timidez e a agonia de não ter tempo e medida. Sim, era a festa da criação e cada mínima insignificância era plena e orgulhosa por ser. Só eu não existia e, não existindo, eu era. A síntese da negação, o erro. E por isso respirava, ofegante, a falibilidade. Que deus poderia se responsabilizar por mim? Que deus poderia, deliberadamente, ter criado este corpo, cheio de ofensas à minha vaidade, e esta alma, plena de pecados por cometer? O autor erra e, se erra, é humano, decaído ou livre? Porque em seu livre arbítrio se faz sádico e se permite a imperfeição e a usa, prepotente, para ostentar sua onipotência. E, sequer matéria, me vejo instrumento de serviço. Formão, lixa ou espátula. Nem sequer barro, ou água, ou terra. Nem sequer poeira ou resíduo. Não sou a serva do senhor. Sou ferramenta, a espera de mãos que me permitam ser. E temo pelo mundo que vem através de mim, o mundo entalhado, perfurado e sulcado por mim. E, se pudesse, o protegeria da minha agudeza e mesmo sem saber, sem merecer, rezaria às mãos para que fossem suaves, que tivessem dedos e idéias delicadas. Mas sou só instrumento. É inútil o sentimento inverbalizável. É inútil a estupidez só possível ao que pretensamente pensa como seria inútil ser humana. Aos instrumentos não é dado planejar a obra. Construo e destruo conforme ordena a mão do deus que me guia.
27 março, 2008
A festa
25 março, 2008
Passa-tempo
Escrevo brincando de campo minado.
Procuro as palavras a espera de encontrar a H.
A palavra silenciosa que calará todas as outras.
Minas Gerais
E também, e ainda, há susto se vejo pássaros e os ouço nessa constante ousadia de voar em meio aos desejos confessados pela existência. E não posso deixar de pensar: esta terra é mesmo de liberdade.
Romantismo
Para que o coração seja aberto vale faca, estilete, machado ou chaves. Mestras ou de fendas.
E são bem-vindos maçaricos e explosivos. E os dentes.
23 março, 2008
Janela
Fatalidade
Se encontro a felicidade na brevidade de um amor não correspondido,
morro mil vezes, a cada flor ímpar que me sentencia mal-quereres.
Amor grande é o que se começa de pequeno.
E os homens que quero ter são os impossuíveis.
Trânsito
Obviedades:
- Fluxos sangüíneos sempre se acompanham de dor.
- Gatos, quando brincam, nunca têm sua ferocidade levada a sério.
- Mãos destróem arrumações e pés, sapatos.
- Pessoas são perecíveis, os sonhos delas não.
- O que não entendemos não faz o menor sentido.
- Masturbação é o sexo que dispensa antes o que seria dispensado depois.
- Gatos são seres auto-clean.
- Banheiros e roupas não são seres. E nem auto-clean.
- Os livros só sabem o que foi contado para eles.
- Intelectualidades tropeçam em inteligências.
- Coisas inteligentes são óbvias.
- Coisas burras também são óbvias, mas se travestem de grandes descobertas.
- O que menos importa é o que mais vale a pena.
- Cabelos, principalmente quando não existem, inspiram a ternura dos dedos.
- Para fazer xixi em meio às plantas é necessàrio um vaso no banheiro.
- Antes uma chatice só do que as acompanhadas.
- A palavra explica o que ela não é.
Oculta
A delicadeza é matéria de segredo. Tesouro guardado pelas palavras cuspidas como fogo. Fica ao canto, no final de um corredor, bem à esquerda, atrás das lanças dos olhos. Pertence aos que a adivinham, entre os escombros e as ruínas. Em busca de ser encontrado é mito com memória de sido.
22 março, 2008
Mutismo
A insubordinação das palavras em "quês" enoveladas.
Nunca dizem o que quero.
Sempre caladas.
Abjeto
Ódio ao cotidiano que dilui todas as dores e todas saudades. Que evapora a indignação e o já parco e gasto senso de justiça dos homens. Ódio ao cotidiano que rouba a sensação do vento e um antigo e primário desejo de voar. Ódio ao cotidiano que verga tudo o que cresce e cospe, na cara dos seres racionais a racionalidade dessa vida irracional.
Carta
Terra,
Te escrevo para dar as notícias do que não sei, já que, o que sei sempre se desfaz diante das lembranças. As ruas, as noites e os telhados permanecem iguais. Talvez, mais empoeirados, como tudo o que, embora mude, permanece. Me faço o sentimento e você. A grama continua rente ao chão e ainda não a vejo em árvores e os gatos se tornaram boa companhia e professores. Aprendo as gatices de seduzir e a sofisticação da preguiça, a buscar os prazeres de uma existência noturna. A ouvir os chamados da noite. Ser fora do próprio tempo. E, não mais somente durante as noites, desperto com seus passos e para o seu beijo. A maioria dos dias que moram em mim continuam sendo os de sol, mas sinto chegando os amores pelos dias de chuva, esses exercícios de saudade que permitem a visita ao tempo em que somente respirar já era viver. E no calor, ou na falta dele, nas cores intensas, e nos aconchegos nublados, dos meus olhos os dias pedem beleza para a dizer aos seus. O ritmo da vida dita passos de uma dança feita para os meus pés em você e percebo essa brutalidade delicada que me leva por entre tantos como se não existissem e me deixo levar, e ficar, pela pressa e a preguiça de existir em multidões e
Costura
Sempre útil ter à mão agulha e linha, a fim de prevenir do imprevisto e já saber o conserto certo, remendo do de nem se ver e notar. E também uma certa arte. Costurava. Sentia prazer no desmanchar das coisas prontas e no ter que fazê-las por si mesma. E também gostava de cortar. Empunhava tesouras e com elas picotava os mundos das páginas de revistas, coisas antigas encontradas ao acaso, tecidos baratos e fitas coloridas, as de lembrança e promessa, os três pedidos, milagres de amor, de saúde e de dinheiro. Mundos que se reconstruía na displicência do que é incerto e será desmanchado, no tecer, com os fios frágeis de emendar pedaços, a vida e um possível futuro. Perdida a conta das vezes em que se feriu com agulha e foi por elas desperta, recusando o sono dos séculos sem fim. E também, em um tempo, tesoura havia atravessado a sua mão, de um lado a outro. E viu o de dentro, sem recheio de maior interesse do que as bolinhas brancas, como de alguns brinquedos decapitados. E sem sangue. E por onde segue o isso que sei e penso e que sinto senão por sangue? Existiria? E por isso se buscava, colecionando as marcas e os cerzidos, os pontos e as cicatrizes, vestígios de uma exploração constante e ininterrupta.
O homem na varanda ouvindo ópera
Era uma rua que levava aos lugares enevoados que guardava. Longa e curvilínea, em que as muitas árvores, de copas como os quadris das negras, o da mãe e o próprio, ainda por ser mas que incomodava como destino oferecido por cigana, ocupavam a esquerda e a direita, o peito e o ventre. Saía de casa mais cedo que o necessário para chegar atrasada como sempre e inventava desculpas e pretextos para seus encontros. Buscava organização e método, que não tinha, para cumprir o ritual. Se lavava e perfumava para o vento que fosse com ela testemunha da partida do sol. E então surgia, noturna, toda célula de capturar o restante e o à volta, o que não era o ainda e nem o antes. E tudo o que desejava era não ser interrompida. Que nada ou ninguém surgisse em meio a caminho trazendo atraso. E antes da confirmação da noite, se acendia uma meia-luz que a atingia por inteiro. Protegia a sensibilidade com blusas de frio e se deixava levar pela descoberta do prazer feito por minúcias. A luz abriria a porta deixando passar o homem. O homem de peito nu, com os cabelos molhados e que pedia algo. E o que poderia lhe dar? O que tinha era o de não deixar ser visto. Pelos olhos o corpo chega, e o mundo vem, mesmo no escuro, mas só o que é visto com sentidos é que entra e nos mora. As copas, as folhas arfantes, as saias e as anáguas, entregues ao desejo de movimento que é brisa, que é vento, que é tempestade. A ópera. E o homem nu, que poderia ser um entre todos os outros, comercializáveis como jeans e geladeiras, era o que despertava o desejo de um além do depois. A nudez dele se vestiria de muitos corpos para trazê-lo ao desejo de não ser mais do que um. E os homens só serviriam se tivessem música.
O espinho
Era um menino muito corajoso. Suportava o espinho insolente que invadia sua intimidade e seu sentir. Mas chorava em seu sofrimento causado pelos espinhos que cercam flores e o das conversas fúteis, o retardo para as buscas mais urgentes da necessidade do que vive, o algo que em seu nome lute contra a própria dor, a que havia inaugurado com o choro mais sincero de estranhamento e susto. E é muito fácil se perder entre a dor e sua manifestação. E por isso ele agora volta. Consolado. E envergonhado.
18 março, 2008
Macia
As tentativas de amor são tentativas de existir. E os meus quase-amores são tentativas de você. Exercícios de afastamento, de se perder. E, sempre, e mesmo diante do seu silêncio, me prometo ser amada porque as desumanidades me fazem mais humana. E choro pelos cães ferozes que não posso afagar e pelos homens e mulheres de cassetete. A minha força me dói. Quero ser munida de doçura e suavidade para enfrentar a aspereza da vida.
Possuída
Os bichos que me tiveram foram muitos. Já existi como cão, grata por ter donos e pela mão amiga que afaga, enxovalha e alimenta. Existi como tartaruga, em ciclos improváveis, longos demais para humanos já desacostumados a pré-existir. Existi ave, sofrendo gaiola e carente do colo do vento. Existi peixe, submersa e silenciosa. E existo gato, consciente de que humanos fazem muita sujeira e não sabem se limpar sozinhos. Busco alturas, equilíbrio nas quedas e ardo em telhados. Desafio Murphy e a impossibilidade da gravidade. Sem uivos e sem gemidos a Lua me tem.
O bicho
Era muita sede. Chorava. Chorava muito e gritava em pirraça sem fim porque sua sede era sem fim. Chegavam alguns copos d'água, mas todos insuficientes para irrigar deserto. Nenhum estava cheio de saciedade. A sede, cada vez maior de esforço e necessidade, precisava de água que viesse de sua mão e com urgência. O padrinho, cansado do trabalho na olaria, estava deitado, se esforçando por dar atenção ao que ouvia de um rádio. Não ouvia as músicas ou o dito. O que ouvia era faíscas coloridas que hora ou outra saltavam do fio desencapado. E se esquecia do choro e da sede. Vez em quando caía uma lágrima que ia se juntar ao mar da outra, também desenganada de consolo. Examinava o rádio e se impressionava com o que via mais do que com o nome: Fagulhas! E por ser incontrolável o desejo de proximidade, retomava o choro em força e em intensidade. A dor por descobrir que nunca se pode ser perto o suficiente com garantias de segurança. E o pequeno estrondo trouxe o olhar do padrinho e junto seus ouvidos, que receberam a explicação: Esse bicho me mordeu! Mereceu a água que buscava, colo e acalanto. Mas o veneno nunca mais deixou seu corpo.
17 março, 2008
Destino
Preguiça
O menor vislumbre de morte me excita. Só morre o que vive. O susto não é a morte, é a percepção da não-vida. A plenitude do vazio, a ausência, as reticências. A palavrosidade em busca de saciedade e descanso no silêncio. Como a palavra, estamos sempre prestes ao começo e ao fim. A palavra que só quer, preguiçosa, a quietude de um repouso absoluto para um cansaço absoluto.
O Gato
O homem certo é leve, suave e preciso.
O homem certo tem a moral dos gatos,
Pede sem pudor: água, comida e amor.
Costureira
Eu, que temo as alturas, busco os telhados. Eu, que sempre fui peso, flutuo bailarina, como dentes de leão soprados de felicidade. Eu, com desamor às cebolas, as busco em jardins e enterneço com sapos e manjericão. Ouço a promessa de silêncio das músicas e sinto que posso respeitar as formigas e sua organização. Combino o cheiro do café com suco de abacaxi e esse cheiro ainda escorre
Óculos
No começo havia a luz que feria e a fazia chorar. E antes das palavras bailarinas e da insuficiência dos lenços de papel, buscava as hastes sem lentes, que usava como armadura. As molduras de ver de que não precisava, embora delas necessitasse. Não havia o defeito físico, ótico, o defeito era sentir. Excesso de sentimentos e de vida. O mundo, peso demais para um corpo somente corpo. Frágil carne e vísceras e fluídos. O olho nu era poro, vertedouro do suor pela fadiga em ser o que não se sabe. As molduras eram a salvação. Alinhavam o cotidiano, enfileiravam céu, cães, casas, pessoas, lixo, roupas, pão e vozes para que em si pudessem ser. Com suas molduras, distinguia o indistinguível e, tola e ousada, buscava caminhos não pisados em direção a todas as coisas. Fotografava cheiro de mato e de gente, dos desejos das gentes, as cores possíveis no escuro, hálito de vento e água. Mapas de para onde seguir e que não seriam mais do que névoa. Em algumas circunstâncias é possível o olhar sem moldura. Não para chorar, mas para ser atingida pelo excesso de claridade de todo começo.
Autofagia
Devorava a si mesma. Começava pelas unhas e, pedacinho a pedacinho, chegava ao coração.
O empório de doces e amargos que roía, mastigava, ruminava e que a deixavam plena de si.
Codificada
O milagre da joaninha
Agramatical
A análise sintática da vida revela a carente e imperfeita língua.
Somos verbos intransitivos ansiosos por complementos.
Celeste de Barros
O nariz
Começou por ele, vermelho e redondo. Um mundo pela metade onde só cabia o ridículo guardado em uma vida de espetáculos, o picadeiro dos sonhos. Era o riso a outra metade do mundo.
Felicidade
Felicidade já foi picolé,
Coisa derretida escorrendo pela mão.
E como era incômoda a felicidade.
Felicidade já foi xícara de café solúvel,
Cheiro disfarçado em um gosto que devia ser.
E como era decepcionante a felicidade.
Felicidade já foi família,
Um barulho do que não se diz e não se adivinha.
E como era pouco a felicidade.
Proposta
Então me pergunte se quero ser a mulher, a que mora em sua cabeça e que é a dona dos seus músculos e da sua vontade. Ou não pergunte nada, só me tome pela mão e me leve.
A profissão de deus
O cansaço, o tédio e o sono deveriam ter lhe denunciado. Estava atrasado e com aquele inconfundível gosto de cabo de guarda-chuva na boca. Virando o corredor, notou a mocinha que vinha apressada ao seu encontro. Sentaram-se ao lado um do outro algumas vezes e, em algumas culturas, sentar ao lado é mesmo grande intimidade. Não poderia fugir e antes que tentasse, ela disse: Você sumiu! O que tem feito? Trabalhando muito? Emagreceu! Tá se alimentando direito? Se cuida heim?! Não é só deus que mata não. Nem teve tempo de inventariar seus hábitos, tão forte foi o impacto da revelação. Então era mesmo verdade. Haviam outros agentes de viagem...
Salivação
Eu, que de hábito e costume nunca umedeci os dedos no decorrer das páginas e das coisas, me vejo em ânsia, prestes a me lançar
A flor
E também se viu como as outras, as que haviam sido antes dela, colhida antes de ser toda, de se desprender e ser pétala entregue ao vento. Guardada em livro, e ainda em cor e delicadeza, se conservava no quase desmanchar sob toque de dedos. Não poderia ser de novo sentida como era no momento em que foi separada de sua raiz.
A rodoviária
Os ônibus sempre foram um mistério. Mereciam observação. E era o que fazia, se sentava ao meio-fio e os observava e organizava, em uma taxinomia das distâncias do que levavam. E nisso gastava as tardes. Ali era um amontoado de gente e coisas, pressa, saudade, cansaço. Uma agonia com cheiro de vômito, fritura e dos gases da digestão das máquinas. E muita poeira. E o mundo se tornava grande porque, se não eram as mesmas indo e vindo, eram muitas pessoas só indo, ou só vindo, ou só se perdendo por tantos caminhos, tantos lugares. Alguns tinham domíclio fixo e os via no cinema, na praça, em algumas árvores ou em alguns de seus filhos. Mas se sentava ali, vendo os ônibus estafados e regurgitantes, vomitando destinos e gentes. E via sempre o mesmo, em todas as cores, formas e jeitos. Ares de perdidos. Eles também não eram dali.
Cores para noites sem lua
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